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Sophia Zorzi: A Tapeçaria como Espaço de Construção

Sophia Zorzi, nasceu em Minas Gerais, onde cresceu ao lado dos resquícios da Mata Atlântica, um ambiente que já em si parece emanar histórias antigas e mitologias esquecidas. Artista e tecelã, ela entrelaça essas heranças com as suas próprias narrativas, criando tapeçarias que vão além de simples trabalhos manuais. Suas obras são mapas sensoriais que exploram a interseção entre o feminino, o psiquismo humano e as estrelas — um mosaico de culturas, memória e espiritualidade. Graduada em Design de Moda pela UFMG, integrante do coletivo Aranha Arranha e com passagens por programas como o Women@Dior e o Alice Brown Scholarship, Sophia constrói um imaginário híbrido que transita entre arte, artesanato e espiritualidade, refletindo sobre tempo, memória e pertencimento.

Sophia Zorzi
Fonte: Sophia Zorzi

Entre novelos e linhas que parecem desenhar constelações, Sophia fala com uma calma assertiva sobre sua busca por algo mais profundo, quase intuitivo. “Eu sempre fui uma pessoa das manualidades, sempre desenhei muito. Eu gostava muito de materializar minhas ideias com a mão, sabe? Então, o desenho, até mesmo as linhas, sempre foram muito importantes para mim”, conta.

Foi na faculdade de moda, ao lado de amigos e nas experiências inesperadas que surgiram durante a pandemia, que ela se viu imersa nas possibilidades da tapeçaria. Mais do que uma técnica ancestral, ela encontrou nela um meio de expressão que não só refletia, mas também moldava sua pesquisa pessoal. Com o tempo, a técnica ancestral se transformou em linguagem própria. 

Essa pesquisa e essa produção ganha corpo quando junta todas essas esferas: arte, moda e design. Com o tempo isso foi criando realmente um corpo e aí eu meio que fico nesse meio do caminho entre os campos  – tanto do design, quanto das artes visuais, quanto da moda.”

MashUp: Como surgiu o seu interesse por tapeçaria?

Sophia: Quando comecei a estudar Moda, já tinha um forte interesse pelo artigo textil. Desde cedo, me interessava por bordados, aplicações e estampas. Essas técnicas sempre me atraíram, mas a tapeçaria era algo que eu ainda não conhecia para além do que a gente conhece no senso comum. Na faculdade, foi aí que tudo começou. Um amigo meu, o João Marcos Lisboa, estava fazendo o TCC que era uma tapeçaria, totalmente cheia de fios coloridos, tingidos naturalmente e ele me ensinou vários pontos. Depois foi algo que comecei a explorar de forma autodidata. Eu aprendi muitas coisas dessa forma e eu acho que isso é refletido também na minha prática – como eu penso e elaboro o projeto. Foi importante entrar em contato com o que é a urdidura, que é o fio que fica na vertical, e a trama, que é o fio que vai na horizontal, entrelaçando tudo. Com isso, eu consegui entender como funciona o processo e aprendi a tecer no tear. Esse material, esse conhecimento, foi fundamental para mim. Mas, a tapeçaria em si é algo muito intuitivo. Quando comecei, eu queria explorar todos os pontos possíveis. Hoje, trabalho com os mesmos pontos, porque eles resolvem de maneira muito eficaz a imagem que quero criar.

MashUp: Você usa muito o azul em suas obras. Não sei se é uma percepção minha, mas essa cor parece ser uma marca no seu trabalho. O azul tem algum significado especial para você?

Sophia: Quase todos os meus trabalhos têm ao menos um pouco de azul. Talvez a linha que eu tenha mais diversidade de cores.Eu acho que eu gosto dessa imensidão que ele traz, tanto do céu quanto do mar. Parece uma cor que você afunda, sabe? Eu quero comunicar um pouco dessa sensação que o azul me traz. 

MashUp: Quais simbolismos você traz dentro das suas artes, da sua tapeçaria?

Sophia: Desde muito nova, eu sempre me interessei por mitologia. Lembro que eu tinha livros sobre mitos, e foi também na pandemia, quando eu estava desenvolvendo meu primeiro projeto autoral, que comecei a mergulhar mais fundo nesse universo. Estava lendo Máscaras de Fogo, do Eduardo Galeano, e aquilo me inspirou a trabalhar com máscaras. Elas têm essa coisa curiosa: são objetos vestíveis, mas ao mesmo tempo misteriosos. Eu ficava pensando muito nesse entrelugar, entre você revelar quem realmente é ou você esconder. Então, a máscara, ela tem todo esse mistério. Então, por conta dessa leitura, esses mitos começaram a entrar na minha produção, mas não de uma forma literal. Eu não queria ilustrar a história de forma direta, sabe?

Eu também me interesso muito pela mitologia mediterrânea antiga, e meu objetivo não é ilustrar cenas específicas, por exemplo. Não é isso. Eu gosto de pensar mais na sensação que aquele mito traz. É uma forma de refletir sobre sentimentos humanos universais, como a fragmentação, a teimosia. Sentimentos que são difíceis de representar de forma concreta, mas que, na tapeçaria, podem se transformar em algo mais fluido, mais aberto. Então, é quase como se eu lesse o mito e deixasse que ele se transformasse naquilo que eu sinto ao ler. Ele vai se tornando uma espécie de tradução do meu corpo e das minhas emoções.

MashUp: Então, você faz uma espécie de associação, não é? Algo mais pessoal com o que o mito provoca em você…

Sophia: Sim, eu geralmente faço essas associações. Tem partes de um mito que me lembram momentos específicos da minha vida, como quando me senti muito forte ou, ao contrário, quando me senti vulnerável. Eu gosto de trabalhar essas instâncias do sentimento, trazer para perto o que é humano, o que é de um corpo que sente, que se movimenta, que tem questões. O mito tem esse papel também, né? Ele não é só uma história, mas uma representação do nosso repertório enquanto civilização. Então, quando eu me aproprio do mito, ele passa a ter esse aspecto individual para mim, porque é como eu o sinto, mas também ultrapassa o meu corpo, o meu tempo. Ele é muito mais antigo do que eu. 

Os mapas são outro símbolo recorrente na pesquisa de Sophia Zorzi, conectando mitologia, cartografia e constelações. Quando perguntada sobre uma figura mitológica que chama sua atenção, ela menciona a Hidra. “Ela guia como todas as relações, ela norteia o ser humano na Terra”, explica. “E é uma figura inesgotável. No mito de Hércules, cada vez que ele corta uma cabeça da Hidra, surgem duas no lugar. Isso tem muito a ver com o meu processo criativo: toda vez que eu crio algo, sinto vontade de criar mais. Cada obra abre novas possibilidades, amplia meu repertório.” 

Mas o fascínio pela Hidra não é apenas simbólico: “Os heróis desses mitos sempre enfrentam monstros que, muitas vezes, são figuras femininas. Isso não era tão evidente para mim no início, mas depois percebi que essas entidades combatidas — como a Medusa, por exemplo — são representações do feminino. É uma forma de o patriarcado se impor, transformando mulheres em ameaças à jornada do herói.”

MashUp: Como você lida com o tempo da tapeçaria em um mundo tão acelerado?

Sophia: O tempo da tapeçaria é lento. Às vezes, uma peça pode levar mais de um mês para ficar pronta. E eu vou vendo aquilo que era apenas linha se transformar, sabe? As linhas se entrelaçam, viram um tapete, um corpo que tem uma forma, uma dimensão, um peso. De certa forma, é como se eu estivesse registrando o tempo ali. É um desafio, realmente, porque no mundo de hoje, somos pressionados a produzir com uma velocidade 2.0, né? Mas, ao mesmo tempo, tem muitas coisas que simplesmente não conseguimos enxergar nesse ritmo. Como a matéria, por exemplo. O que é passageiro, digital, visual… mas não é matéria, não é um objeto físico. E ver tudo isso se transformar em um objeto concreto, de fato, é algo que me conecta.

 

MashUp: E você esboça esses desenhos antes ou vai criando conforme a tapeçaria vai tomando forma?

Sophia: Cada tapeçaria tem um processo que me ensina muito nesse sentido. Antes, eu costumava eleger um protagonista, uma forma, e começava a trabalhar nela. Depois, ia fazendo desenhos para tentar entender o que a peça estava me pedindo. Sempre achei muito importante “escutar” o trabalho. Esse é um exercício constante para mim, entre o que eu achava que a peça ia ser e o que ela realmente se torna. Hoje em dia, eu aprendi a abraçar mais essa transformação. Antes, eu desmanchava muito — ah, não gostei dessa cor, e desfazia tudo, o que tornava o processo ainda mais demorado. A busca pela perfeição me fazia querer recomeçar sempre, mas a tapeçaria, ao contrário da pintura, vai crescendo de forma vertical. O processo é mais gradual, e o que parecia ser o “erro” muitas vezes vira parte do projeto. No início, eu tinha dificuldades com isso.

Eu comecei a usar imagens digitais para me ajudar a entender melhor o que eu queria. Pegava imagens antigas, que são de domínio público, e editava no Photoshop. Isso me dava uma direção. No projeto que estou trabalhando agora, por exemplo, eu tinha uma ideia inicial, mas ao começar a trabalhar nela, percebi que não era o que eu queria. Então, isso me ajudou a entender como a peça poderia se transformar, enquanto ainda me guiava pelas minhas referências. A técnica digital é completamente diferente da técnica manual, e isso exige uma adaptação constante.

Quando eu pintava, eu tinha um pouco mais de dificuldade nesse sentido, porque a pintura envolve sempre adicionar uma camada a mais. Já na tapeçaria, a obra vai crescendo, verticalmente. Chega um ponto em que você pode aplicar um bordado ou continuar preenchendo. Em geral, eu penso muito na composição — é uma das coisas mais importantes na criação de uma imagem. O equilíbrio da peça vai se ajustando, às vezes até desmanchando uma parte de baixo para adaptar tudo no lugar certo. Acho que, por ser uma técnica vertical, você vai preenchendo aos poucos, e isso facilita o entendimento do início, meio e fim do trabalho.

MashUp: Como foi a experiência com suas bolsas de estudo?

Sophia: Ambas foram virtuais. Foi bem no período da pandemia. Eu fui bolsista de uma comunidade internacional, e tive a oportunidade de apresentar um trabalho lá. Foi uma experiência muito legal, porque o acolhimento deles foi incrível, tanto na preparação para a apresentação quanto no dia da apresentação em si. Foi muito bom ver como essas práticas acontecem ao redor do mundo. Cada lugar tem suas características próprias, como os tipos de tecelagem, os “tears” (que são grupos ou métodos específicos), sabe? Por exemplo, temos o “tear mineiro”, o “tear vertical”, o “tear mapuche”, o “tear francês”… Enfim, há uma grande diversidade. Mas, no fundo, a técnica de tecelagem, a tesselagem, tem uma base comum entre esses lugares. Foi muito bom perceber como essas pessoas que estão engajadas nessas práticas me acolheram nesse sentido.

A outra bolsa foi um programa de uma parceria com a UFMG e a Women@Dior em parceria com a UNESCO. Foi dedicado à autonomia, criatividade e sustentabilidade para mulheres na graduação. Foi muito legal, um programa de alto nível. Eu recebi o convite para participar virtualmente, o que foi bem interessante. Nesse formato virtual, você sente que há uma certa distância, né? Mas, mesmo assim, foi uma experiência enriquecedora.

MashUp: Existe uma projeção maior para a tecelagem, especialmente no sul do Brasil? Ou você sente que há mais oportunidades no exterior?

Sophia: Eu acho que, especialmente no Brasil, existem alguns concursos e iniciativas, principalmente no sul, que têm uma projeção mais consolidada. Mas, comparando com o que vejo no exterior, acredito que lá há mais residências artísticas e programas voltados para o meu setor. O mercado de arte fora do Brasil tem mais possibilidades para artistas que trabalham com tecelagem e outras práticas manuais.

MashUp: Como é ser artista hoje no Brasil? E como os artistas independentes conseguem se manter e participar de uma comunidade artística?

Sophia: Ser artista no Brasil é desafiador, sem dúvida. Não existem muitos recursos, e a estrutura de apoio é limitada. Mas conheço pessoas que se saem muito bem nesse desafio, criando suas próprias estratégias. Eu, por exemplo, tenho me colocado nesses três setores diferentes — além da tapeçaria, já trabalhei com figurino, com costura, entre outras coisas. A gente vai criando estratégias e se adaptando às circunstâncias. Acho que, para ser artista no Brasil, você precisa ter uma boa estratégia e um alvo bem claro. Às vezes, você precisa se adaptar e tentar fazer com que as coisas aconteçam dentro do que é possível. É uma montanha-russa. Não quero cair no romantismo de achar que é tudo perfeito, mas, ao mesmo tempo, é uma escolha de área, né?

CURIOSIDADES

Se pudesse colaborar com qualquer artista:  Gostaria de colaborar mais com os artistas ao seu redor, com as pessoas que estão próximas. Estou em um momento muito de pensar sobre como meus trabalhos podem se conectar com os de outros, então eu ficaria muito feliz de colaborar com meus amigos, como o Abraão Veloso, que também faz tapeçaria, o João Marcos Lisboa e a Luiza Poeira. Acho que essas colaborações mais próximas têm algo especial, uma troca que é muito rica. Além disso, tem alguns artistas que você acaba conhecendo virtualmente, pelo Instagram, e com quem eu também adoraria trabalhar. Um exemplo é a Marie-Claire Messouma, que tem um trabalho incrível. Ela faz tapeçarias, cerâmica, bordados… é um trabalho muito têxtil, que me fascina. Eu realmente acredito que essas trocas criativas mais próximas têm um valor imenso, e estou muito focada nisso nesse momento da minha trajetória.

O conselho mais esquisito: Acho que o conselho mais esquisito que já recebi foi sobre a ideia de que eu precisava ter um talento, um dom, ou estar sempre inspirada para criar. Isso me parecia um atraso, uma ideia que pode realmente prejudicar qualquer artista. Quando uma criação não sai como eu imaginava, de maneira simples, e não chega ao resultado que eu esperava, isso me ensina algo. Isso me ensina a continuar, a buscar formas de melhorar e me desenvolver, e não desistir. Eu não acho que talento seja algo nato ou que precise ser esperado. Para mim, talento é algo que se desenvolve, que vem com o tempo e com a prática. Claro, algumas pessoas têm uma predisposição natural para certas coisas, uma habilidade ou uma paciência maior para determinadas atividades, mas isso não é algo fixo. Eu vejo o talento mais como uma habilidade que se aprimora, uma conexão que você vai criando com o tempo.

 

 

 

 

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