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Pole dance é só para os fortes?

Na contramão dos estúdios elitizados e da lógica do empoderamento que custa caro, o projeto Perifa na Pole transforma a dança em um ato político, inclusivo e vital para corpos periféricos, pretos, trans e indígenas.

Em uma sala na Vila Guilherme, próxima à Galeria do Rock, na zona norte de São Paulo, as aulas de pole dance se erguem como totens de resistência. Ali, o projeto Perifa na Pole transforma o pole dance em ferramenta de empoderamento, especialmente para pessoas pretas, indígenas, trans e periféricas. O Perifa nasceu em 2022, quando Vitória Grassi e Isabella Kniepert, duas mulheres apaixonadas pela dança, se incomodaram com a inacessibilidade da prática e decidiram, juntas, torná-la possível para quem nunca teve espaço.

“Sempre durante as aulas ou eventos de pole dance que eu frequentava dentro do meio, eu não via tantas pessoas como eu: pretas ou pessoas de outros grupos também minorizados. Ficava tentando entender o porquê disso já que o pole dance vem desse contexto marginal. Nisso, encontrei a Isa em um evento e ela tinha me chamado para um lugar que ela ia se apresentar, um estúdio daqui de São Paulo. Lá eu senti isso ainda mais forte, porque era um lugar bem mais elitizado. A maioria das pessoas brancas. Eu conversei sobre o que eu estava sentindo com a Isa e falei: ‘Nossa, queria que a gente pudesse fazer alguma coisa’. A Isa falou que ela tinha algumas ideias de fazer um evento, aulas gratuitas de pole dance e outras danças urbanas. Com isso, a gente começa a se mobilizar.

Vitória Grassi, fundadora do Perifa na Pole

Tradicionalmente associado a clubes de striptease e cercado por estigmas, o pole dance tem sido ressignificado por coletivos como o Perifa na Pole

As aulas são gratuitas e o que se exige é comprometimento, respeito, escuta e corpo presente – mesmo que ele esteja cansado, inseguro, em dúvida. “Às vezes são mães, às vezes também são pessoas mais velhas. Querendo ou não quando a gente se torna mãe nosso corpo muda, não tem o que falar. Assim, o projeto traz muito o corpo de verdade e o que o corpo é capaz de tudo. Qualquer corpo, sabe?”, diz Isabela. “As professoras ali tem todo um respeito de entender que cada corpo tem a sua maneira de se expressar, os seus limites, enfim. Então dentro do do nosso espaço, isso é super respeitado, até porque é para ser um espaço onde as pessoas se sintam confortáveis”, complementa Vitória.

Entre o tabu e a libertação

Mayara Leonel, dançarina, atriz, modelo, performer, psicóloga e aluna do Perifa, carrega a dança no corpo desde criança. Mas por muito tempo, dançar não foi opção — era ameaça. “Meu pai falava que dança era coisa de puta, que eu ia acabar sendo dançarina de cabaré.” Mulher negra, de quadris largos e bunda grande, sempre foi colocada no lugar de quem não precisaria se esforçar tanto, de quem conseguiria tudo “com a bunda”.

“Meu pai sempre teve muito receio disso, porque ele percebia os olhares assediadores dos amigos dele, ele me protegia muito nessa questão dos assédios e ele sentia essa energia, sabe? Que as pessoas tinham um olhar sexual para o meu lado. Então, tudo que me colocava em destaque — dança, teatro — ele preferia me levar para outro lugar.”

A dança de May começou nas ruas, no terreiro, nas rodas de capoeira, no axé e no hip-hop. “Eu sempre fui aquela criancinha da família que dançava no churrasco, que causava, que todo mundo apontava e falava: ‘Essa daí tem talento’.” Mas o talento ficou preso ao imaginário. “Minha mãe identificava esse talento, mas ela não sabia dos projetos públicos, não tinha como me levar.”

Na adolescência, chegou a dar aulas de dança escondida no projeto Escola da Família. Mas a vida seguiu outro rumo — a maternidade precoce, um relacionamento abusivo e, aos poucos, tudo que amava foi silenciado. Dança, teatro, arte: apagados por um tempo.

A reaproximação só veio anos depois, quando já formada em psicologia. 

“Foi a faculdade de psicologia que me fez entender que a dança é uma necessidade minha. E aí quando caiu essa ficha, eu fui fazer Tec de Artes, me formei no curso técnico de dança e, através da ET, conheci o Perifa.”

May se inscreveu no Perifa na Pole pela primeira vez em 2022, mas não teve coragem de ir.

Fonte: May Leonel

“Eu sou uma pessoa muito insegura comigo mesmo, com a minha dança. Meu pai sempre falou que dança não era para mim, que dança era coisa de puta. Eu sempre tive essa relação do corpo com a vulgaridade e a dança. Eu tenho minhas danças, elas são danças pélvicas. Sempre que eu danço, meu quadril ele se enfatiza muito. Fiquei mais olhando o Pole dance e, por mais que eu admirasse, ache coisa mais linda… Super artístico e poético, além datem questão do esporte também, sabe? Eu ainda fiquei insegura, não fui..”

O projeto virou abrigo

A cena se repetiu em 2023. Outra tentativa frustrada. Só em outubro do ano passado, ela enfim foi. Mandou uma mensagem para uma das administradoras, explicou sua ausência anterior e foi acolhida. “Dali eu fiquei. Me apaixonei.” Mas a experiência não foi só técnica ou estética. Foi vital. “O Perifa foi como uma engrenagem para mim. Conforme eu fui me movimentando dentro do projeto, outras coisas na minha vida foram se movimentando também.”

Em 2023, a May perdeu uma filha “Foi o momento mais devastador da minha vida. Eu acabei perdendo uma parte dos meus sonhos. Parecia que tiraram um pedaço de mim e o o perifa me trouxe esse oxigênio que faltava. Eu estava andando num deserto, sem encontrar nada, e de repente consegui respirar.” O projeto, nesse contexto, virou abrigo. “Foi o que me fez respirar de novo.”

Logo depois de entrar nas aulas, May foi aprovada na São Paulo Escola de Dança. Voltou a experimentar outras práticas, a dar aulas, a ocupar o próprio corpo com liberdade. A ressignificação do pole dance foi também um enfrentamento pessoal. “Porque eu sou uma mulher vulgar, eu danço mesmo, rebolo mesmo e eu não tenho nenhum problema com a com a vulgaridade. Eu acho que inclusive a vulgaridade me constitui como ser humano, porque eu sou uma pessoa que gosta de me expressar, que eu tenho liberdade sexual, eh não tenho limites pro meu pros meus desejos”.

Aos poucos, o julgamento familiar foi substituído por um novo espelho

“O pole me fez refletir sobre o meu próprio corpo, sobre meus preconceitos. Por mais que eu seja politizada, ainda tinha tabus. Essa vulgarização desse lugar das mulheres que dançam pole dance são putas, prostitutas ou safadas… Elas podem sim ser safadas, podem sim ser mulheres que gostam de explorar sua libido, sua sexualidade, porque é isso, uma delícia, não dá pra gente fingir que isso não acontece. Mas para além disso, é sobre poder, sabe? Sobre ser uma mulher que pode fazer as coisas, pode dançar um pole dancer, pode ser múltipla. A mulher, o homem, as pessoas no geral têm essa possibilidade de ser múltiplas. Eu posso ser uma excelente psicóloga no meu consultório ou nos atendimentos online, como eu também posso ser uma excelente pole dancer, e posso dar palestras, e posso ser uma excelente mãe. Eu acho que a vida é isso: a gente não precisa se limitar a um único lugar, ser colocado numa caixa. A gente tem a possibilidade de explorar o mundo e o corpo de tantas formas que, por conta de um padrão que foi colocado, a gente acaba se limitando e obstruindo os nossos desejos. Eu acho que isso foi uma coisa que o pole dance me trouxe como reflexão.”

Quanto custa subir na barra?

O pole dance custa caro. Muito caro. Uma aula avulsa pode ultrapassar os R$ 60. Um conjunto de treino pode passar dos R$ 200. Um par de sapatos importados, referência entre as praticantes, não sai por menos de R$ 800. A barra de pole, sozinha, pode custar mais de R$ 1.500. E isso sem contar as taxas para participar de festivais, eventos e competições — que ultrapassam R$ 250 só de inscrição.

“Você vai gastando e parece até um esquema de pirâmide.  A gente quer ser validado. Acho que em qualquer esporte a gente acaba querendo reconhecimento, só que para acessar esses lugares é muito caro. Um festival de pole dance, a taxa de inscrição para você participar passa de R$ 250. Foi muito caro para você participar. Aí tem… vamos supor, no dia você quer fazer cabelo, quer um figurino legal, quer isso, quer aquilo…”, comenta Isabela.

A ideia de empoderamento vendida em cima do pole foi cooptada por uma lógica de mercado que exclui quem não consegue arcar com esses custos. As duas concordam em um ponto: se fosse realmente sobre empoderamento, tornariam o esporte acessível. Uma pesquisa feita pelas fundadoras do Perifa com 129 pessoas reforça esse cenário: entre as pessoas entrevistadas, a maioria declarou renda entre R$ 1.000 e R$ 3.000 mensais — enquanto os gastos com pole chegama até R$ 700. Para além das finanças, 100% disseram que topariam frequentar aulas gratuitas em espaços culturais, se houvesse essa oportunidade.

O que dizem os dados: 

INTERESSE PELO ESPORTE

Mais de 80% das pessoas entrevistadas já praticaram ou têm interesse em praticar pole dance.

RENDA MENSAL

43% têm renda entre R$ 1.000 e R$ 3.000 mensais.

GASTOS COM A PRÁTICA

50% gastam até R$ 700 por mês com a prática.

ACESSIBILIDADE

98% disseram que teriam interesse em frequentar aulas gratuitas em espaços culturais.

REPRESENTATIVIDADE

61% relataram encontrar pouca frequência de pessoas negras, indígenas, trans ou travestis nas aulas

“Você quer vender empoderamento, autoestima… você chama a atenção das pessoas, por isso os preços vão lá em cima. E quando a gente fez essa pesquisa, tivemos relatos de pessoas que estão no meio do pole e falam sobre como o pole dance realmente muda a vida delas, como elas se enxergam, como enxergam o próprio corpo. E nisso a gente entende que não dá pra negar esse acesso a quem não tem condição de viver isso, de experimentar o pole dance, de conhecer — até porque ele tem origem nessas pessoas: strippers, trabalhadoras do sexo, enfim”, diz Vitória Grassi, fundadora do projeto.

No começo do projeto, as duas fundadoras precisaram recorrer a vaquinhas, rifas e parcerias para conseguir levantar dinheiro. Com o valor arrecadado, compraram quatro barras e conseguiram instalar as primeiras aulas na Casa de Cultura da Vila Guilherme, o Casarão. Desde então, lutam para manter o projeto vivo com apoio de editais e doações — mas nem sempre o dinheiro vem. Esse ano estão sem edital, mas vão se virando com o que tem.

Além do custo financeiro, há outra barreira: o ambiente. “Tem espaços que essas pessoas realmente não se sentem confortáveis, porque são excludentes”, diz Vitória. Essa exclusão também aparece nos palcos. A entrada em festivais depende não só de talento, mas de contatos e recursos. 

“Onde existe um ego, querendo ou não, as pessoas às vezes elas impedem outras de entrar. Especialmente pessoas diferentes dela. Isso eu já reparei. Eu acho que é um lugar que às vezes acaba sendo inacessível, até mesmo para as pessoas te conhecerem e abrirem essa porta, sabe?

Isabella Kniepert

Mesmo assim, o projeto insiste. E já começa a abrir outras portas. Algumas alunas hoje competem, dão aulas, ocupam espaços antes inalcançáveis. A construção é lenta, mas viva — e cresce rápido. Com apenas três anos de existência, o Perifa na Pole já alcança quase 6 mil seguidores nas redes sociais.

Cada corpo é um manifesto

No Perifa na Pole, não há corpo ideal. Há corpos diversos — que chegaram cansados do trabalho, que carregam filhos no colo, que têm cicatrizes de cesáreas ou de transições hormonais. Corpos que, muitas vezes, nunca se viram dançando. Corpos que ouviram a vida toda que não eram “do tipo certo”. E que agora descobrem, com as mãos na barra, que são potência.

A proposta do projeto não é extrair performance, mas abrir espaço. Valorizar o ritmo individual.

Num universo de danças que muitas vezes cobra hiperflexibilidade, alimentação regrada, treino intenso e estética magra, o Perifa propõe outro caminho. Um onde a consistência vale mais que o contorcionismo.

“Nesse meio mais elitizado, as pessoas vão para academia todos os dias, tipo, elas têm um acesso a uma rotina perfeita, são pessoas que tem privilégio. Elas tem tempo para treinar, para se alimentar bem e todas essas coisas. Muitas vezes não é acessível também para pessoas de periferia que tem dois empregos que trabalham o dia inteiro, não tem tempo para treinar ou para se alimentar bem. Às vezes são mães, às vezes também são pessoas mais velhas” – Isabella Kniepert

Há alunas entre 20 e 70 anos. Mulheres cis, trans, pessoas não-binárias, mães, senhoras, iniciantes e avançadas. Mais do que um coletivo, o Perifa na Pole se tornou uma comunidade. Ali, entre uma conversa e outra, entre um treino e um tropeço, nasce algo maior: o senso de pertencimento.

“A gente ali se ajuda enquanto comunidade pra fortalecer. Não só pra que o projeto cresça, mas para que as pessoas cresçam enquanto artistas, enquanto trabalhadores dentro da cena do pole dance.” – Vitória Grassi

Na contramão da indústria, o projeto segue seu próprio fluxo: oferece capacitações gratuitas, promove rodas de conversa, recebe doações de barras para que alunas possam treinar em casa. Algumas ex-alunas hoje são professoras, outras competem em festivais. O ciclo se retroalimenta — e expande. 

Como comentou a May Leonel: “Eu posso ser uma excelente psicóloga no meu consultório, como também posso ser excelente no pole dance. Posso dar palestras, posso ser uma excelente mãe. A vida é isso: a gente não precisa se limitar a um único lugar”.

Fonte: Ravena Carvalho, Estado de Minas
Fonte: Hanna no Pole, Perifa no Pole
Fonte: Rk Pole, Perifa na Pole

Talvez seja justamente isso que o Perifa na Pole ensine: que o corpo não é obstáculo, é instrumento. Que a dança não é concessão, é direito. E que entre a técnica e a queda, entre o giro e a vertigem, existe algo maior – a chance de, finalmente, ocupar o próprio lugar

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